Ao início da noite a luz eléctrica
vacilou, seguida de uns cliques-claques metálicos e apitos diversos. As
lâmpadas quase apagaram, bruxuleantes, quais candeias de azeite com pavio curto e morrão mal aceso, tremeluzindo
ao vento impossível vindo da frincha imaginária da porta. Lá fora apenas uma
réstia de rosa no horizonte para lá da baía, para lá da ilha, a bruma do
cacimbo que se some ao inicio da noite, as luzes da cidade brilham mais, no ar
mais transparente. Afinal foi só aqui no prédio, os cliques-claques e os apitos
da tecnologia envolvente cessaram, a UPS manteve a televisão e a Internet a
funcionar, os laptops nem deram por nada, os telemóveis e smartphones
continuaram a carregar as baterias, o micro-ondas voltou a acender o relógio
permanentemente desacertado nos 00:00. Lá fora a noite acabou rapidamente de
cair, um dia igual a tantos outros.
Pouco depois a electricidade acabou
por cair também, falhou redondamente, completamente, sumiu-se, pifou, caiu uma
noite escura no apartamento. Já não há réstia de rosa no horizonte, só a luz da
cidade ilumina escassamente o ambiente, os cliques-claques e os apitos desistiram
rapidamente de acontecer. Ficou apenas um lusco-fusco difuso do lado da
varanda, o suficiente para, entre todos os habitantes da casa com actividades
suspensas, se pousar um prato, se salvar um documento, desligar vários
portáteis, se tropeçar num fio, empancar numa mesa, partir um copo, encontrar o
telemóvel que tem lanterninha, encontrar a outra lanterna, encontrar a chave,
encontrar o caminho, ligar o gerador. E a luz fez-se, eléctrica, amarela,
confortável, os apitos e cliques anunciando o regresso, ruidoso dos vários
geradores que se ligaram ao mesmo tempo na vizinhança. E depois mais dois dias
e dezoito horas para alguém encontrar a avaria, desmontar o curto-circuito e reparar o fusível
geral do prédio. Estímulo para uma contabilidade cuidadosa, o fiável motor
Perkins do gerador gasta dois litros de gasóleo à hora, desligado e ligado
quanto baste para assegurar que o depósito cheio dos jerry-cans vindos da
gasolineira da esquina garantam o café expresso e a torrada matabicheiros, a
televisão, a Internet, o carregamento das baterias dos vários dispositivos de
localização e comunicação, o micro-ondas, os outros computadores, a iluminação,
o frigorífico, o ar condicionado nesta época não faz falta, o forno, o isqueiro
do fogão a gás não é grave temos fósforos, a máquina de lavar, o funcionamento
da bomba de água para a cozinha e os asseios. Não necessariamente por esta
ordem de importância.
Lá fora, a noite continua iluminada
pelas luzes da cidade, uma lua fininha e amarela recorta-se no céu baço e uma tira
de névoa marca a baia, mais adiante a ilha, as luzes de um navio, o negro do
mar.
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