sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O Apaguinho da Semana

Ao início da noite a luz eléctrica vacilou, seguida de uns cliques-claques metálicos e apitos diversos. As lâmpadas quase apagaram, bruxuleantes, quais candeias de azeite com  pavio curto e morrão mal aceso, tremeluzindo ao vento impossível vindo da frincha imaginária da porta. Lá fora apenas uma réstia de rosa no horizonte para lá da baía, para lá da ilha, a bruma do cacimbo que se some ao inicio da noite, as luzes da cidade brilham mais, no ar mais transparente. Afinal foi só aqui no prédio, os cliques-claques e os apitos da tecnologia envolvente cessaram, a UPS manteve a televisão e a Internet a funcionar, os laptops nem deram por nada, os telemóveis e smartphones continuaram a carregar as baterias, o micro-ondas voltou a acender o relógio permanentemente desacertado nos 00:00. Lá fora a noite acabou rapidamente de cair, um dia igual a tantos outros.
Pouco depois a electricidade acabou por cair também, falhou redondamente, completamente, sumiu-se, pifou, caiu uma noite escura no apartamento. Já não há réstia de rosa no horizonte, só a luz da cidade ilumina escassamente o ambiente, os cliques-claques e os apitos desistiram rapidamente de acontecer. Ficou apenas um lusco-fusco difuso do lado da varanda, o suficiente para, entre todos os habitantes da casa com actividades suspensas, se pousar um prato, se salvar um documento, desligar vários portáteis, se tropeçar num fio, empancar numa mesa, partir um copo, encontrar o telemóvel que tem lanterninha, encontrar a outra lanterna, encontrar a chave, encontrar o caminho, ligar o gerador. E a luz fez-se, eléctrica, amarela, confortável, os apitos e cliques anunciando o regresso, ruidoso dos vários geradores que se ligaram ao mesmo tempo na vizinhança. E depois mais dois dias e dezoito horas para alguém encontrar a avaria, desmontar o curto-circuito e reparar o fusível geral do prédio. Estímulo para uma contabilidade cuidadosa, o fiável motor Perkins do gerador gasta dois litros de gasóleo à hora, desligado e ligado quanto baste para assegurar que o depósito cheio dos jerry-cans vindos da gasolineira da esquina garantam o café expresso e a torrada matabicheiros, a televisão, a Internet, o carregamento das baterias dos vários dispositivos de localização e comunicação, o micro-ondas, os outros computadores, a iluminação, o frigorífico, o ar condicionado nesta época não faz falta, o forno, o isqueiro do fogão a gás não é grave temos fósforos, a máquina de lavar, o funcionamento da bomba de água para a cozinha e os asseios. Não necessariamente por esta ordem de importância.

Lá fora, a noite continua iluminada pelas luzes da cidade, uma lua fininha e amarela recorta-se no céu baço e uma tira de névoa marca a baia, mais adiante a ilha, as luzes de um navio, o negro do mar.

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