A Malagueta e a Paz

Referências



Ensaio incompleto sobre os efeitos da expansão europeia do século XV nas relações interpessoais, a partir da observação desfocada de uma sociedade estatal, mas pouco, em comparação (contaminada) com uma sociedade demasiado estatizada e em degradação.


ou

Para onde é que caminhamos, onde é que a nossa sociedade vai parar?


v

Parte I
O Estrangeiro

Há uma coisa que me intriga. Bem, de facto há várias, mas esta é, na circunstância, a coisa que me intriga: chama-se "diferenças culturais". Assim mesmo, no plural e tudo. É raro ter a consciência aguda de que a minha maneira de pensar, de abordar os problemas do dia-a-dia, de me comportar perante a diária audiência dos meus pares e até a maneira de lavar os dentes à noite depois do jantar, não são tanto derivadas da simples satisfação das necessidades básicas, mas mais resultado da evolução da sociedade para um Estado, sendo esta uma das muitas formas de associação que existem e existiram e provavelmente existirão, comum lá na minha banda, mas peculiar, desenvolvida no seio do que evoluiu e é conhecido vulgarmente por "cultura ocidental".
Comecemos por aqui mesmo, pelo ocidental. Relativamente a quê? Terá sido assim chamada "cultura ocidental" pelos indianos ou pelos chineses? Compreendo que os europeus chamem "velho continente" à Europa, estará porventura geologicamente correcto, não tanto antropologicamente. Quanto ao desenvolvimento cultural e civilizacional tãopouco será o mais velho; pode não ser o mais velho, mas desenvolveu-se mais depressa que outros. Diz o ditado que a necessidade desperta o engenho, e o facto é que a rapaziada da idade do seixo lascado que se encontrou acima do paralelo 36 no início da última era glaciar, teve mesmo que começar a inventar à força toda para se safar e cumprir os desígnios mínimos da vida, ou seja para comer e se reproduzir (e isto até aos nossos dias, só que os motivos agora são outros, mas já lá vamos). Portanto, chamar a algo "ocidental", pressupõe que o observador se oriente de forma a ficar a Oriente daquilo que classifica, ou então, que reconheça qualquer coisa de diferente a Oriente, justificativo da auto-distinção como Ocidental. No primeiro caso poderia ser uma alcunha europeia dada ao clone civilizacional enxertado à martelada nas américas? Nesse caso, "civilizações ocidentais", são as dos americanos, e continuando no hemisfério Norte, os japoneses e dos russos, são os que vêm a seguir para ocidente dos velhos eurocentricos, se os mapas do google não me estiverem a falhar (sim, foi piada tecnológica, claro que desde pequenino que vejo atlas impressos em papel lá por casa). E com isto ignorando olimpicamente os construtores de manipanços da ilha da Páscoa, as tribos da Polinésia e os caçadores de cabeças das outras Nésias, inclino-me para o segundo caso, ou seja o reconhecimento de que os tipos que vivem a Oriente da minha terra são diferentes, são estranhos, estrangeiros, vizinhos mas não familiares. Quanto a Ocidente estaremos entendidos, quanto a cultura...

 (mmm... e a situação da Crimeia? Ah, é a para lá da fronteira, que se dane! Espera: e Gibraltar? e Olivença? e...)

Chego assim ao cerne da questão (sempre quis escrever isto, "cerne da questão", fica com um ar intelectual algo démodé e no caso é adequado). Portanto, a minha educação, a influência de pais e pares, a passagem adolescente pelo ensino oficial normalizado, a experiência de ilusão autonómica e a aparência de liberdade de jovem adulto, foram todas condicionadas pela lógica dominadora-dominante de uma sociedade estatal, governada por líderes desconhecidos mas aceites, em que se troca da liberdade primitiva e fundamental pela segurança e protecção (delegando o uso da força em órgãos especializados do estado), por toca com a convivência pacífica com milhões de desconhecidos a que aprendemos a chamar concidadãos conterrâneos irmãos filhos da mesma pátria (ou tugas, aqui no caso) e mais recentemente cidadãos europeus. Isto tudo por antagonismo ou pelo favor de manter dantes a paz com Espanha de onde não vem bom vento nem bom casamento, e por agora e até ver, de todos os outros mais a Leste da Finlândia-Estónia-Letónia-Lituânia-Polónia-Eslováquia-Roménia-Bulgária-Grécia, estrangeiros estranhos diferentes papões perigosos maus de uma espécie diferente e de onde nunca pode vir coisa boa. Temos assim a distinção Ocidente-Oriente, a fronteira entre amigos e potenciais inimigos, de alguma forma estabilizada pela ausência temporária de reivindicações territoriais ou económicas de cada um dos lados, justificando nas "diferenças" o epíteto Ocidental. Quanto ao "cultural"...

Um incidente no meio do trânsito da cidade: chocam duas viatura conduzidas respectivamente por um chinês e um português. Chama-se a polícia para intervir e resolver a ocorrência, ânimos exaltados, os condutores exasperados vociferam um com o outro. Grita o chinês para o português: TU CALA! ESTÁ AQUI POLÍCIA! FALA O CHINÊS, FALA O POLÍCIA, ESTRANGEIRO NÃO SE METE!  - A Rádio Mais (99.1 FM) e o seus programas são já um ícone na radiofonia de Angola, casos fabulosos do dia-a-dia relatados e comentados de forma humorística, profundamente humana e altamente profissional, para todos os "guerreiros cá da banda". Para ouvir na interminável fila do trânsito de Luanda, o Expresso da Manhã.

Ora então o que é que eu verifico e me inspira aqui abaixo do paralelo -8? Primeiro, numa perspectiva n'golocentrica, salienta-se que o Ocidente e o Oriente estão do mesmo lado que em Portugal, até estamos no mesmo fuso horário e tudo. Por outro lado, há uma discrepancia fundamental, primária, visceral, que salta aos olhos no mais rotineiro acontecimento do dia-a-dia, entre a vantagem ou simples tolerância de um estado governado segundo os padrões da dita "sociedade ocidentalizada" (americana? Japonesa? Não-Russa? Não-chinesa?), aceite enquanto regulador da paz e que por acaso não se acanha nada de apregoar o facto a toda a hora, e um dia-a-dia feito de relações pessoais baseadas no reconhecimento individual, na confiança pessoal próxima, senão mesmo íntima, e na desconfiança irredutível de todos os outros indivíduos, desconhecidos que possam constituir qualquer tipo de ameaça ou intreferir nos interesses imediatos do sujeito, do grupo familiar, do pequeno grupo reconhecido e aprendido de cor, com afinidades mais intuidas desde o berço do que efectivamente cultivadas.  É delicioso e às vezes quase assustador, verificar a tremenda capacidade natural que as pessoas aqui têm de reconhecer os mínimos sinais, inflexões subtis, mesmo as pequeníssimas mudanças no semblante e na postura, "micro-expressões", é assim que se diz?, e reagir prontamente a elas com a pergunta ou resposta absolutamente adequadas. Tenho a noção de que este é um "traço cultural" cada vez mais menosprezado pelos gajos do Norte, mais dependentes da palavra escrita ou falada e mais alheios aos sinais das emoções. Aqui fala-se menos, o gesto mais simples está sempre carregado de significado. Demora reaprender a "ler" as pessoas, num mundo em que as palavras são escassas... Assim, a presença física dos interlocutores é fundamental, "dar a cara" é condição indispensável para um entendimento, o conhecimento pessoal e o reconhecimento individual são indispensáveis numa relação de confiança.

Consta que este comportamento, entre outros, é característico das sociedades "tradicionais", entendidas aqui como não-estatais, embora intrigantemente se possa verificar em qualquer parte do mundo estatizado como um componente socialmente activo, representado por vezes ferozmente por discriminações que vão desde as tribos do futebol às reivindicações bascas e catalãs, dos gangs de marginais suburbanos de qualquer metrópole europeia, asiática ou americana aos kimbos do planalto central angolano, das tertúlias às comissões de praxe, do Kilamba ou da Madragoa às repartições públicas luandenses ou lisboetas, só diferem estas últimas na falta de motivação que origina uma atitude de grupo diferente. Assim mesmo, tudo no mesmo saco, efectivamente evoluimos todos a partir do mesmo modelo de necessidades básicas, tudo me levando a crer que funcionamos assim todos da mesma maneira... Daí a esta formulação foi um tirinho: o regime político (do bando ao estado) será determinado tão só por duas variáveis fundamentais: a vontade de paz, e o tamanho do bando. Isto acaba por influenciar naturalmente a percepção que tenho vindo a constuir do "estrangeiro". E, claro, quanto às diferenças culturais, pois, em que plano se situam efectivamente, dada a envolvente humana e material perceptível. Quanto à cultura, pois...


v
A Globalização

Costumam ser trilogias, o numero é mágico: Liberdade Igualdade Fraternidade, Et Pluribus Unum, Deus Pátria e Autoridade, Pinta, Niña e Santa Maria, Fado Futebol e Fátima, QED. Eu digo Paz e Tamanho do Bando. Redutor? Nem por isso. Vejamos como se pode usar para metáfora a elaboração do gindungo, o molho.

Bem, supostamente não tem nada que saber: é amassar as malaguetas com um pouco de sal, juntar azeite e já está. Só assim... estará? Vejamos com um pouco mais de pormenor o processo actual de espevitar as papilas gustativas com uma dose não-letal de capsaicina, que dizem ser digestiva e boa para o reumático.

Primeiro, as matérias primas. Em Angola cultivam-se principalmente duas variedades de pimentinhos picantes, tal como todos os outros pimentos, originárias da América e introduzidas (aqui e na Índia...) pelos colonos portugueses do século XVII (a melegueta da Guiné, nativa africana, já quase ninguém sabe o que é). Quanto ao óleo, qualquer servirá, mas o melhor é o azeite de oliveira, mais um produto elaborado, originário do Médio Oriente (seja lá para que lado isso for) e importado do Norte em latas ou garrafas de vidro, principalmente da Europa. O azeite, as latas e as garrafas. Ah, e o sal... provavelmente marinho, obtido em salinas, produto local e de comércio milenar, acessível em qualquer mercado (super ou de rua) em saquinhos de plástico, polímeros extrudidos na China, cómodos para transportar alimentos e maus para o ambiente.

Seguidamente, as ferramentas. Numa tabanca de uma qualquer aldeia, haverá um pilão em madeira produzido localmente a partir de uma árvore local, perfeitamente adequado à função de esmagar as malaguetas; na cidade, graças ao comércio internacional entre paises que mantêm relações de paz e tratados comerciais, provavelmente uma tijela de plástico de origem chinesa e uma garrafa de Cuca de vidro europeu resolverão o problema, ao mesmo tempo que colocam a dúvida sobre os benefícios da tecnologia e o acesso às comodidades civilizacionais (por que raio não há um almofariz neste apartamento, nem à venda no supermercado da esquina? Ah, espera, a solução nacional: costumam vender na rua, ali onde o engarrafamento é mais intenso, 500 kwanzas, em plástico, um dia destes compro um almofariz.)

Depois, basta juntar as partes e... arranjar um frasco com tampa. Pois, pode-se sempre fazer o gindungo diariamente ou quando se quizer, mas a disponibilidade para a culinária não é compatível com a "vida moderna nas cidades". Um dia em Cabinda recusei delicadamente uma corvina de muitos quilos ao vendedor, com uma frase de ocasião do tipo "no hotel não dá jeito cozinhar..." ao que ele respondeu "não tem mulher em casa para lhe cozinhar?" e fui andando antes que a oferta comercial evoluisse. Penso que com o gindungo a solução preconizada em Luanda seja a mesma, mas a minha educação ocidental (outra vez? onde raio é que isso fica?) compele-me a fazer uma  quantidade apreciável do gindunguinho e a usar um frasco de vidro com tampa de rosca para conservar o excedente para futuras utilizações. Sei de um caso (aromatizado com um pouco de gin) que durou mais de dez anos... Ah, já agora, faz sentido usar um frasco de qualquer outro produto comercial importado, reutilizado para este fim. Reduzir o lixo, reutilizar o frasco... Faz-se o que se pode pela Cultura.

Assim, da mesma forma que não consigo achar insignificante o frasco de gindungo moido submerso em azeite (o meu com  pouco sal e um pingo de whisky) no armário da cozinha, tento compreender através do comportamento do "meu" bando como chegámos à República vagamente democrática que nos governa hoje. Tal como os benefícios para a saúde trazidos pela inclusão regular dos pimentos na dieta, pode-se sempre fazer alguma pesquisa ao registo histórico, mas no efeito futuro na nossa própria saúde ou na condição política, apenas podemos especular sobre o caminho que as coisas irão tomar. Vai-me doer menos a perna daqui a uns anos se espalhar abundantemente gindungo sobre o meu almoço? Iremos ter uma melhor distribuição da riqueza nacional elegendo este ou outro governante? Mais primário: terei diarreia amanhã por excesso de gindungo ao jantar, ou um grande banco inglês vai falir por excesso de especulação e milhões de pessoas por todo o mundo perderão o emprego em poucos meses?

Quanto aos estrangeiros, podem ser feios, mas fazemos negócio com eles. A economia manda.

Não teremos portanto chegado ainda ao Estado Global, nem mesmo Continental, mas a avaliar pela globalização económica, já lá estamos. Os políticos é que ainda insistem em não querer dar por isso, ou em nos fazer crer que ainda não deram por isso.
Sobre a evolução e outras espécies de liberdade

Alguns seis mil anos de evolução da sociedade crescendo dos bandos de indivíduos até à dimensão de estados e estamos nisto: problemas básicos e problemas globais. Soluções locais ou soluções globais? Água de arroz ou ultra-levure? Desenrascanço vicinal, ou regionalização mundial governada por profisionais? Ambos, diria eu. Na generalidade, à medida que os grupos se instalam em zonas mais prósperas ou beneficiam de algum modo de estabilidade, tendem a aumentar. A partir da dimensão em que os elementos do grupo deixam de se poder conhecer pessoalmente, outras características de identificação se desenvolvem, e a eventual ascenção de alguns indivíduos à liderança do grupo torna-se aceitável pelos restantes, na medida em que novos problemas relacionados com a dimensão do grupo ou com a extensão territorial ocupada, por exemplo, inviabilizam a tomada de todas as decisões à roda da fogueira ou debaixo da figueira. Surgirá então, em grandes grupos de indivíduos que alcançam um certo nível de prosperidade, a função de chefe com a incumbência primitiva de sanar disputas, e impor soluções, trocando o grupo alguma da sua liberdade fundamental de decidir, pela vantagem prática de não ter de o fazer, de ter à disposição um árbitro aceite e inquestionado, um meio organizacional de promoção da paz no seio do grupo. A função do chefe será absorvente ao ponto de necessitar de auxiliares a tempo inteiro, os burocratas, tal como ele dispensados de funções estritamente produtivas, sendo a sua subsistência assegurada pelos excedentes produzidos pelo grupo. Saltando uns milénios no tempo e uns milhões de indivíduos na dimensão, estaremos perante a contradição fundamental das sociedades estatais, em que a aceitação de um estado governado por profissionais da governação implica que os governados prescindam de um certo número de liberdades individuais, em troca da vantagem de a governação especializada prover o equilíbrio e a paz social no grande grupo. A liberdade tem muito que se lhe diga.
Ora acontece que não é isso que acontece na maioria das soceiedades estatizadas (aqui o meu optimismo incorrigível, admito que haverá algumas equilibradas e justas) em que os governos se governam mais do que governam, e em que a manutenção da justiça e da paz são letra morta nuns livrinhos apelidados de "Constituição", ou "Código Civil" só para citar os mais significativos.
Tendo a concluir assim que um Estado é governado por um Bando como qualquer outro, um grupo que emerge e se autonomiza com afinidades diversas e circunstanciais capazes de criar um reconhecimento de objectivos comuns entre os seus membros, tal como os cachecois dos clubes desportivos, ou as contas dos rosários de uma religião qualquer, com o objectivo específico de se auto-proteger e desenvolver ao abrigo de influências, perigos ou intromissões, reivindicações trerrritoriais ou económicas, fechando assim na sua liberdade autocrática o limite da liberdade dos outros grupos. Tergiversando assim o objectivo primário e admiravelmente vantajoso para a sociedade.
O fenómeno é antigo, uma das manifestações autocráticas mais primitivas terá sido mesmo a colagem do bando governante à qualidade divina, tendo como reflexo a colagem subsequente das religiões à governação dos estados. Com vantagens inequívocas para o bando dos dirigentes religiosos, já dispensados de funções produtivas por serem dirigentes, e dispensados da responsabilidade secular pelo ligação privilegiada ao divino. Por falar nisso, encontrei há tempos na "net", sem dúvida no caixote do lixo da "net", um texto de uma  igreja mais ou menos cristã meio universal da glória abrasileirada do reino de sabe deus, dedicado a demonstrar "cientificamente" que a Terra tem seis mil anos de idade. Um amontoado glorioso de asneiras, que ilustram ao extremo que após seis mil anos de evolução não saímos disto. Qualquer dia hei-de pegar só nesta parte do assunto, da necessidade antiga da religião e da inecessidade moderna da mesma, porque haverá outras formas de compensação...

No fundo, não se pode delegar no dirigente toda a liberdade sem critério de responsabilização, sob pena de o bando dirigente arranjar forma de subtrair aos bandos dirigidos o acesso à educação e mais elementar cultura, tornando-os assim em dóceis, se não abjectos produtores de recursos para os burocratas, sem direito a coisa nenhuma. Regras, ética, ou apenas bom-senso. O que não deixa de ser curioso, é a promoção que certos estados fazem do associativismo... Gostaria de testar a hipótese de ser mesmo por imbecilidade pura ou se isto se deve a alguma intenção deliberada, posto que a livre associação (e mesmo a controlada) pode levar à emergência de um novo grupo que suplante o detentor do poder. Suspeito que esta  atracção dos políticos para a instituição de coisas como a "alternância democrática" ou "desenvolvimento cultural", contendo em si o gene da sua própria destituição dos lugares ocupados, seja apenas sinttoma de estupidez ou daquilo a que chamamos graciosamente esperteza saloia. Para testar.
Ah, pois, a Cultura

Chego assim ao meu objectivo, meditar sobre a evolução das nossas sociedades estatais e sobre o caminho que estão a tomar. Afinal, que soluções de organização social  poderemos começar a desenhar a partir daqui, num tempo em que a economia é soberana, as várias guerras em curso derivam provavelmente das mesmas causas, e a maioria dos povos vive numa paz assumidamente desejada, relegando velhas rivalidades para o domínio da anedota. Seremos culturalmente assim tão diferentes, de facto? Ou simplesmente andamos a ser enganados por instâncias diferentes do mesmo tipo de governos, afinal apenas diferentes nas maneiras de concretizar dos mesmos fins? Afinal como se pode conceber uma Cultura contendo tantas diferenças individuais e simultaneamente o mesmo objectivo comum, a perpetuação da celulazinha original... Serão ainda relevantes dentro de alguns (poucos) anos os conceitos de "povo" e de "nação", e até de "país", ou deixarão mesmo um dia de ser necessários, perante a diluição económica e tecnocrática das diferenças individuais? 

v

Uma das grandes diferenças entre uma tribo e um estado, parece pois estar na incapacidade de se chegar a consensos num estado, perante a impossibilidade de todas as pessoas se conhecerem umas às outras e discutirem os assuntos comuns numa única assembleia. Numa tribo, a assembleia é inclusiva, e um pequeno número de inadaptados poderá fazer-se ouvir e, com o tempo, moldar mentes e actos que afectam todos, na medida em que isso vá sendo apreendido como uma vantagem global para a sociedade. No seio daquilo a que se pode chamar uma cultura, acho que se pode chamar a isto progresso.

O progresso gera excedentes, em tempo e em produtos, a tribo aumenta e deixa de ser possível todos conhecerem pessoalmente todos, tendendo a população de criar símbolos identificadores, ritos de pertença à mesma comunidade, e a especializar as funções de alguns dos seus elementos, libertando-os das tarefas comezinhas da estrita sobrevivência para as funções de protecção e liderança. Daí aos estados e impérios, aos governantes, funcionários públicos e cobradores de impostos, foi um passinho pequenino, historicamente falando, mas não pretendo alongar-me sobre a natureza humana neste momento; basta-me a noção de que evoluímos sempre de acordo com a lei do menor esforço, ou da máxima compensação.

Assim chegámos aos estados, primitivamente sob a forma de reinos em que os soberanos provinham certamente das famílias mais adaptadas e inventivas, mas ao mesmo tempo fortes, capazes de liderar, proteger e...  viver bem à conta dos outros. Vendo bem, um reino é uma sociedade humana estatizada em que um grupo de pessoas acredita que a liderança hereditária é uma inevitabilidade antropológica (thanks, Bones), a maioria das pessoas acredita que a liderança tem origem divina, e uma meia dúzia de inadaptados tenta transformá-la numa república.
                       
Várias revoluções depois, chegámos a um ponto em que uma república é uma sociedade estatizada em que um grupo de pessoas acredita que a liderança hereditária é uma virtude política, a maioria das pessoas acreditam que a liderança instituída é um mal necessário, e uma meia dúzia de inadaptados tenta transformá-la numa democracia, anarquista, socialista ou outra ista qualquer.

O que será uma democracia? Uma sociedade estatizada em que todos são iguais relativamente a qualquer coisa e diferentes em tudo o que tem a ver com o acesso ao poder, em que alguns lutam entre si pelos melhores lugares da liderança, a maioria vota esporadicamente em vagas imagens pretensamente familiares e inspiradoras, e uma meia dúzia de inadaptados pode continuar a sonhar com um mundo melhor?

Salvo erro, a História tem vindo a dar razão a meia dúzia de inadaptados.



Referências:
2013, Jared Diamod. O Mundo Até Ontem. Lisboa, Circulo de Leitores.
Wikipedia


Sem comentários:

Enviar um comentário