domingo, 31 de agosto de 2014

SLB vs. SCP

Situação, a meu ver, ridícula, como pano de fundo da (in)actividade dominical: várias horas inteirinhas, num canal de televisão, supostamente de notícias, passa uma reportagem contínua sobre o "dérbi" (seja lá o que for que isso um dia quis dizer), pontuado de hora a hora com umas curtas interrupções para apressados "pontos de situação" nacionais e internacionais, um banco falido aqui, um vírus ali, guerra no Iraque, guerra na Ucrânia, chuvas na China; violência doméstica, incêndio florestal, um par de políticos a debitar irrelevâncias supostamente importantes para um país que há muito os não ouve, o Mundo no seu pior, o regresso das férias, concerto de Anselmo Ralph, nem tudo vai mal...
O artigo de fundo, em contínuo, a Notícia: vários carros de reportagem, vários repórteres em vários locais da cidade de Lisboa, a Segunda Circular temporariamente fechada, actividade de alto risco mobilizando centenas de polícias, forças de choque e outras polícias especializadas no controle de multidões, segundo consta uns três mil homens... Uma enfatizada "caixa de segurança", capacetes com viseira, exoesqueletos à prova de bala, luvas e bastões; a legenda diz claramente "...defrontam-se às 19h...". Imagens constantes de indivíduos mascarados, faixas coloridas, cachecóis (no verão, santa paciência!), bandeiras, bonés ridículos e pinturas ridículas, entre barreiras e fortificações de betão e rede anti-motim. Dois autocarros de passageiros decorados com emblemas circulam escoltados, um vermelho outro verde, batedores da polícia nas suas motos, os repórteres logo atrás, filmando ininterruptamente as traseiras dos veículos de transporte colectivo. Uma curiosa legenda afirma que o jogo desta tarde "antecede o fecho do mercado de transferências", e mais imagens das traseiras dos autocarros à medida que progridem no acesso ao Estádio da Luz, para um jogo "de alto risco". Entretanto, no estúdio, um "painel" de comentadores à volta de uma mesa vai debitando informações completamente irrelevantes num português rebuscado e assaz idiota, enquanto  numa imagem sobreposta as traseiras dos autocarros vão aparecendo centradas nas vistas das ruas da cidade; o "debate" vai sendo intercalado com entrevistas estúpidas a alguns indivíduos aparentemente felizes com a actividade à volta do estádio, que declaram entusiasticamente ter como único objectivo na vida assistir e opinar sobre o jogo Benfica-Sporting que se vai realizar. A mesma coisa em mais dois canais de televisão. Pergunto-me: será que as outras (milhões de) pessoas se apercebem do ridículo da situação, da desproporção de recursos mobilizados para tão irrisório resultado?
Isto não é desporto, é negócio, é espectáculo, acho que toda a gente sabe disso; tem impacto emocional e financeiro relevantes numa sociedade em paz com os vizinhos e em luta consigo mesma, constitui um escape ou ocupação de tempos livres de muitos milhares de pessoas, emprega milhares de pessoas assessorando os artistas que dão corpo ao espectáculo e uns milhões de lucro a alguns empresários do ramo. Grande mostra de habilidades e aberrações, espelho de uma sociedade que vive do ócio, ou, pelo menos, da oportunidade de negócio que é a indústria do ócio. Chamam-lhe "desporto", melhor ficaria "circo" como reconheceram os senhores do automobilismo da fórmula um.

O "futebol" como espectáculo de massas, no sentido lato do termo, (não o do desporto em si, que também existe um jogo com o mesmo nome...) agrega nos seus adeptos os mesmos atributos que habitualmente definem uma religião, e que são: crença no sobrenatural, a pertença a um movimento social, provas de dedicação ao grupo bem visíveis e onerosas, respeito por regras e comportamentos específicos do grupo, e a fé de que alguma força sobrenatural irá influenciar os actos do dia-a-dia do indivíduo. Considerando estes cinco aspectos que definirão o fiel de uma religião, testemo-los relativamente ao adepto do futebol:
- Eles acreditam que o seu clube irá ganhar o jogo ou o campeonato ou a taça ou o que quer que seja, de forma puramente devota e não racional, acreditando que uma força superior os fará vencer os adversários;
- os adeptos de uma equipa orgulham-se dela e afirmam-se "dela" da mesma forma que os fiéis se identificam com a "sua" qualquer grande religião, inclusive nos meios empregues na menorização ou desprezo por outras crenças, no caso, pelos adeptos de outros cubes;
- fazem peregrinações de quilómetros, isoladamente e em grupos, sujeitam-se regularmente a despesas imensas e a incómodos vários para ir a um estádio ver um jogo, sacrificam "coiro e tesoiro" pelo clube que idolatrizam, chegando ao extremo de se matarem por isso;
- pintam-se da cor eleita pelo clube, inventam gritos e cantigas, orações e preces, cumprimentos, vestimentas ou adornos e emblemas que os identificam inequivocamente;
- Rezam constantemente às várias divindades emprestadas das outras religiões, na expectativa de que um poder sobrenatural conduza a bola para o fundo da baliza do adversário mais vezes do que para a própria.
Se isto não é uma religião...

Aqui perto há um templo enorme de uma religião muito difundida, que agrupa numa fé sobrenatural milhares de fiéis em sessões semanais, dançando alegremente enfeitados com panos coloridos, afirmando em uníssono ter como único objectivo de vida participar no culto e sacrificar-se pelas suas regras de conduta, na expectativa de que a influência divina alivie o fardo da vida diária. É curioso matutar na influência que as religiões têm nas sociedades, considerando a cada vez menor relevância do sobrenatural nas actividades diárias. A propósito dos recursos investidos ao longo de milénios nas religiões, numa formulação curiosa Jared Diamond afirma que uma sociedade de ateus teria grandes possibilidades de ultrapassar as sociedades religiosas em termos de competitividade, e assim dominar o mundo. Como seria o mundo sem futebol? E sem os produtos chineses?

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