O Casamento e Outras Histórias

Parte 1: FF
Parte 2: Boillon de Coulture
Referências


v


ou o peso do colonialismo visto da cozinha



Vana vakalanga dya ivakalanga moko
Onde há comida, há também conversa.

Kimfumo tumbwa, ka kitumba ko
O chefe deve ser eleito, não se deve impor por si próprio.
 (provérbios kikongo)

Diz outro provérbio que “de Espanha nem bom vento nem bom casamento”; das razões que levaram a tal dito, salvo a questão do vento Leste que continua a incomodar os agricultores da raia, sobra um meio sorriso pelos desgraçados e desactualizados casamentos reais de antanho e,  bem vistas as coisas, já ninguém se lembra mesmo dessa parte, já não tem nada que entusiasme. Pois por aqui acontece uma coisa parecida com “os tempos da escravatura”; também já estão distantes no tempo quanto baste para se ficarem pelo folclore e pela desculpabilização da distância histórica, ou seja, já  não empolgam nem suscitam grande discussão. Emocionam tanto como as viagens do Corto Maltese sem os desenhos do Hugo Pratt, ou menos, como o Major Alvega sem os aviões.

Ora  acontece que indo para Norte ali quase a chegar a Lândana, uma vilazinha piscatória com ar de quem já viu melhores dias e que é, a bem dizer, a segunda cidade da província de Cabinda, passa-se por um sítio curioso: principalmente por não ter nada de curioso, ou seja, é um sítio, há uma memória, isso já será coisa importante, quanto ao local propriamente dito, não tem nada. Trata-se de um “lugar de concentração dos escravos a 400m”,  como atesta uma placa poeirenta meio disfarçada numa curva da estrada, confirmada 400m depois por outra mais expressiva. Lá encontramos umas arvorezitas a delimitar os vestígios de um antigo cercado, e no meio, um imbondeiro imponente com uma placa comemorativa a desvanecer-se em escamas de tinta agredida pela exposição ao clima cruel. Ouve-se um ribeiro a gorgolejar ao lado, evocando a frescura da água cristalina no meio da floresta densa, o mar já se vê por entre as árvores, a praia é logo ali um pouco mais abaixo. Ou seja, temos uma baía calma, praia q.b. para fundear, um ribeiro bom para fazer aguada, um cercado para arrebanhar a mercadoria. Tudo o que até ao final do século XIX fazia falta ao comércio... Não tem a dimensão física do antigo entreposto na Catumbela (ao pé do Lobito, hei-de lá voltar, da outra vez só vi ao longe), só a dimensão histórica é a mesma. Aqui permanece o sítio e pouco mais que a memória escrita na tabuleta, há uma baía linda, uma aldeia actual à beira da estrada no umbral da selva, ah, e a vista para o mar...!

Penso eu, que pensarão os actuais Cabindas da questão da escravatura? Que evocará a memória desses tempos num camponês que vende bananas enquanto atende o telemóvel, num funcionário que entra às dez e sai às doze para o almoço e talvez não volte, num quadro de empresa que usa smartphone enquanto conduz um jeep recente com uma aparelhgem sonora carregadinha de decibeis? Perguntei a uns quantos mais à mão, a amostra, em rigor, não deve ser estatisticamente significativa... A melhor opinião talvez tenha sido a do P que me dizia  um dia destes “não te sei dar opinião sobre isso; sei que fiz um trabalho na escola sobre esse sítio, mais nada...”
No contexto dos trabalhos de história do secundário, será que o estudante adquirirá ao menos uma pontinha de consciência do impacto que acontecimentos passados tiveram nas pessoas da época em estudo, do valor relativo das coisas noutros tempos, noutras culturas? Onde acaba a história e começa a mistificação institucional? Onde andaria a nossa capacidade de análise crítica nos primeiros trabalhos da escola? Valerá mesmo a pena conhecer as razões por detrás das nossas práticas actuais? Porque será que as divagações sobre o sentido da vida e a origem do mal me parecem sempre meio lamechas? Terei mesmo de responder às minhas próprias questões, começar uma crise existencial ou simplesmente manter a boa disposição? Bem, acho que sim. Onde é que eu ia, mesmo... Pois, do “tempo de escola” há sempre uma ou outra coisa que marca, que fica, que se compreende, outras coisas ficam pelos caminhos do esquecimento. Há, no entanto, imagens que permanecem na memória colectiva, não se perdem “na noite dos tempos”, antes vêm de lá e perduram, ecoam ainda hoje. Esquecerão a uns, a outros será relembrado, haverá mesmo coisas que convém não esquecer.


v

Portanto, voltando à minha história e dando crédito a vários investigadores dos usos e costumes dos povos da região, as classes sociais indígenas tradicionalmente eram três, com direitos e deveres sociais instituídos pela tradição oral, nomeadamente recorrendo à memorização de provérbios contendo a sabedoria de incontáveis gerações. Seriam elas: os nobres, única classe de onde poderiam ser eleitos os chefes, responsáveis pelas decisões importantes e em última análise pelo destino de toda a comunidade, bem como pela reunião dos conselhos e tribunais para resolução de contendas; os homens livres, no uso de todos os seus direitos sociais, sujeitos à família governante e aos nobres e com a sua hierarquia própria, dependente da antiguidade do clã; e os escravos, condição desprovida de quaisquer direitos ou regalias, onde se podia cair por decisão judicial ou por captura em campanha de assalto aos vizinhos menos simpáticos, exclusivamente com esse fim. Neste último caso, poderia ser pago um resgate (em géneros ou em escravos...) para libertação dos capturados. Mais, deu para entender que a escravatura para além de perfeitamente aceite era útil, embora eventualmente com níveis diferentes de procura e de utilização conforme a civilização, mas em todas as épocas terá sido uma prática aceite  e em tudo socialmente enquadrada. Cá como lá. E o comércio perfeitamente natural, decorrente do tipo de “bem”, útil e transaccionável.
Visto daqui e de agora, é estranho, pouco sentido, com pouco sentido; deve ser efeito da modernidade, fica a sensação de uma coisa meio abstracta. Ou de uma certa moral que mudou o plano da abordagem ao problema da submissão de homens a outros homens, alternando a mediação do natural com o sobretnatural, deixando-nos com uma actualidade em que vamos vivendo na tal “mentira plausível” perante a verdade inconfessável.


v

Posto isto, almoço em Lândana. Perto da praia, praticamente em cima da praia onde se enfileiram as pirogas dos pescadores  feitas de tola-outrora-branca hoje escura do ar e do mar, algumas a precisar de remendos, perto da ponte-cais a precisar de uns remendos. Abancamos num jango grande a precisar de uns remendos, onde o Pai Nosso (é mesmo o nome dele...) nos serviu umas postas de corvina grelhadas e uns FF, “chips” de banana-pão acabados de fritar, chicuanga, arroz e feijão de óleo de palma. E umas Super Bock, uma cerveja muito popular por estas bandas. Entretanto, demos mais uma volta na História:
Lândana pode estar decrépita mas tem história, foi dos primeiros pontos da costa de África abaixo do Equador contactados regularmente pelos navegadores portugueses. Mais tarde foi sede do primeiro dos três tratados famosos por colocarem o território sob o protectorado dos “bons” portugueses, prometendo manter os locais a salvo dos “maus” franceses, assinado em 1833 no monte de Chinfuma (o segundo para Sul da vila). Sobranceiro à baía, no primeiro monte chamado Colibri,  fica a actual sede do governo municipal, ou melhor, a residência do governador, com uma vista fabulosa para a foz do rio Chiloango e para a lagoa de Massabi bordejada de mangais densos; os montes lá ao longe são a fronteira com o Congo.
Pois o acontece que o FF também tem história, mas com resultado diverso das anteriores: é acrónimo popular para o popular Frango Fiote, assado na brasa partido ao meio, o resultado é assim metade petisco e metade política. Trata-se de um franguinho autoctone, muito bem passadinho, salgadinho, magro mas sem deixar de ser suculento na metade petisqueira, como é óbvio. A parte do Fiote é diversa e mais polémica, resultando aparentemente de um mal entendido histórico, daqueles que “pegam” e acabam na gíria, sem que as pessoas se detenham efectivamete no seu significado. Mfiote, ifiote, quer dizer negro (pessoa negra)  em qualquer dos dialectos ibindas, e aparentemente por má tradução, foi entendido como sendo o nome da língua falada em Cabinda. Ou seja, os de cá falariam “lingua negro”. Descontando a alarvidade dos que "falavam branco", o facto é que, de forma pejorativa, o colono usou ao longo do tempo o termo “fiote” indiscriminadamente como adjectivo para tudo o que era dos indígenas (logo inferior...) como a (incompreensível) “língua fiote”, a (pobre) cabana fiote, o (estreito) caminho fiote, a (tosca) cama fiote, e por ser pequenina, a galinha fiote. Esta galinha, chamada “galinha dura” quando incorporada na muamba praticada em Luanda, é também a “galinha tradicional” ou “galinha nacional” na bela cabidela do Huambo.
 Bem, o “frango fiote” ao contrário do que o nome poderia fazer supor não é gastronomicamente nada inferior, é bem saboroso, um belo exemplo de “pica-no-chão” pequenininho, apaladado pelo sal e bem passado no churrasco (o gindungo à parte), um delicioso FF de lamber os dedos.

v

Parte 2

BOUILLON DE COULTURE

ou a importância da família em qualquer caldinho



Nfumu ba tuma: Nganga ba sema
O Chefe manda: o feiticeiro dá a benção

Awole wantu, umosi ninga
Dois são um grupo, um só é uma sombra

(provérbios Kikongo)

Como dizia o Padre António Vieira em 1652 a propósito de quem encontrou em Cabo Verde, “São todos pretos, mas somente neste accidente se distinguem dos europeus. Tem grande juizo e habilidade, e toda a politica que cabe em gente sem fé e sem muitas riquezas, que vem a ser o que ensina a natureza” e que havia “clérigos e cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão auctorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas cathedraes”. Mesmo considerando a época em que ele e nós vivemos, a diferença para alguma África de hoje não me parece muita, isto é se houver. Admito assim que não evoluímos grande coisa nos últimos quinhentos anos... Será? Pega-se numa interrogação, logo outras  a seguirão.
 
Pegando por uma ponta qualquer da meada com que a vida nos vai tecendo a existência, observo a dificuldade do estrangeiro em compreender as relações entre as pessoas de cá, as atitudes e posturas sociais diferentes com que tropeça ocasionalmente. Há que aferir os referenciais... A parte fácil e de assimilação imediata, tem a ver com atitudes básicas, expressões vulgares, pequenas coisas observadas e praticadas nas actividades diárias e que passam rapidamente da sensação de “novidades” para perfeitamente “normais”; adotam-se rapidamente algumas expressões, alguma gíria, algumas “modas”. Será a curiosidade, a necessidade de integração; afinal, a nossa espécie tem aptidões de sobrevivência excepcionais, não é só o proverbial desenrascanço português, é mesmo “em Roma sê romano” levado à letra, ou no equivalente local awo welw vata, wene wantu atelema, ngeye mpe telema, avo avowanda, ngeye mpe vwanda, ou seja, “se chegares a uma aldeia e encontrares os habitantes de pé, fica também de pé, se os encontrares sentados, senta-te também”.

Adaptamo-nos e sobrevivemos, mas ser mwangolé não é só bué ginguba, nem uns mambo para tratar ou uma maka para resolver, ou dizer dezoito horas em vez de seis da tarde. Qualquer situação mais séria requer maior conhecimento da maneira de ser e de fazer e facilmente se “passa ao lado”, fica-se como o bovino a olhar para o paço. Vá lá, posso não ser o tipo mais sensível às subtilezas da linguagem corporal ou da expressão facial, mas ou é de ver muitos episódios do “lie to me”, ou algumas coisas serão intuitivas: só dá algum trabalho pensar nelas e trazê-las ao consciente, fazer a correspondente interpretação e arquivar para futuro uso; no entanto, ver, ler, ouvir, só por si não resultam imediatamente em saber. É sobre a aprendizagem do dia-a-dia destas gentes que a meditação escrita, espero, poderá ajudar a transformar alguma informação em conhecimento.
v
Esta civilização baseia-se numa estrita hierarquia familiar fortemente enraizada; o jovem não é só criado pelos pais, toda a aldeia colabora, pois todos sabem como intervir na educação. Os filhos são “da aldeia”, mais do que do que simplesmente do clã, onde as posições relativas dos membros da família estão rigidamente estruturadas e são respeitadas cuidadosamente. Até aqui, nada de estranho, as sociedades indo-europeias ou semitas praticaram diversos formatos do mesmo, evoluíram uns, outros permanecem quase intocados, outros têm presenças vestigiais, quase curiosidades folclóricas. Mas estão lá.
Quando um homem e uma  mulher casam, as famílias efectivamente “casam” uma com a outra, não existe a fórmula “casamento-apartamento”; as casas dos pais de ambos estão sempre abertas para receber os filhos e netos, criá-los se necessário for, substituindo os pais biológicos. Isto justifica a complexidade dos arranjos pré-matrimoniais, afinal não é só um casalinho novo, os vários membros das respectivas famílias terão forçosamente que se entender uns com os outros.  O alambamento, o (pagamento do) pedido do noivo à família da noiva é o “casamento tradicional”, constituindo um momento mais importante que a cerimónia de casamento propriamente dita como é entendida na tradição judaico-cristã; é nessa reunião de festa geralmente em data marcada por um tio dela, que se unem ambas as famílias e se chega a um acordo (nomeadamente financeiro) para que o casamento se concretize. Os namorados saem do pedido efectivamente casados para todos os efeitos sociais.
 Trata-se da importância da família nas relações, bem como das relações entre os membros da família. Em Angola em particular e provavelmente em muito mais África, deve-se respeito aos mais velhos, a regra é simples. O irmão mais novo obedece ao mais velho, o mais velho da família é respeitado e obedecido por todos, os interesses do clã mais antigo da aldeia prevalecem sobre as vontades das outras famílias. Abaixo do homem está a mulher, abaixo da mulher a criança. Na base, o escravo. Creio ser nesta teia de relações estruturadas que reside uma das razões fundamentais para que nada se consiga realizar nesta sociedade sem o conhecimento prévio do parentesco e da posição dentro da família, bem como da família relativamente à aldeia, e sucessivamente à tribo, povo, nação a que se pertence. Afinal, sem se determinar claramente qual o peso relativo dos personagens em diálogo.
Isto para um “de fora” não é fácil, claro que um de fora à partida está irremediavelmente fora do esquema. O reconhecimento, por vezes de forma subtil da posição social do interlocutor é, diria mesmo, crucial para qualquer negócio que se queira tratar. Negócio aqui entendido no sentido lato da gíria brasileira, como qualquer assunto (mambo), questão (maka), ou acto comercial propriamente dito. Uma vez feito o reconhecimento, é estabelecida, quantas vezes de forma não verbal, uma linha de acção concreta para o futuro da relação, seja qual for o tipo de interacção entre homens livres.  A fórmula é “não se consegue fazer nada sozinho, tem de se conhecer alguém” (ou alguém que conhece alguém, etc.) A situação típica para um estrangeiro é “não deves ir sozinho”, ou “conhecem-me e esperam que eu dê a cara”, e ainda “cá sou muito conhecido” (e provavelmente o pai e/ou a família deste muito respeitada). Tudo somado, cumprido o protocolo de reconhecimento, compõe-se o caldinho, a obra faz-se, seja ela qual for.

v
Portanto, metendo a colherada no bouillon de coulture e remexendo um pouco, como no muzongué, caldinho angolano:  ferve-se o óleo-de-palma, a polpa do tomate, a cebola cortada às rodelas finas, a água e o sal; passado um pouco junta-se a batata-doce aos bocados grandes e o gindungo pisado, deixa-se cozer uns minutos; depois junta-se o peixe fresco cortado às postas e o peixe seco cortado aos pedaços e deixam-se cozer. Serve-se acompanhado ao lado com a kizaca ou espinafre cozido, farinha de mandioca frita e uma espremedela de limão verde para dar “aquele toque”. E mais gindungo, e funje para acompanhar a preceito. Matéria para um belo almoço, as coisas devem ser feitas pela ordem certa para saírem bem.




v






Obras consultadas:
P. José Martins Vaz missionário do Espirito Santo, 1970. No Mundo Dos Cabindas - Estudo Etnografico.
P. Joaquim Martins, c. S. Sp., 1972. Cabindas –Historia, crenças, usos e costumes.
Emanuel Kunzika, 2008. Dicionário de Provérbios Kikongo. Ed. Nzila, Luanda.

Outros:
História e Cultura Bantu, in: http://www.ritosdeangola.com.br/page.php?131
Wikipedia (diversos).

Para rir:

Para sorrir amarelo:

Sem comentários:

Enviar um comentário