sexta-feira, 4 de abril de 2014

Purgatório

As regras da sã convivência com gentes e costumes diversos, revestem-se de tonalidades inesperadas. Assim, como é que um aprendiz de iconoclasta rendido à diversidade, obviamente sem pretensões de militância, vai lidar com a imersão permanente em manifestações do pensamento mágico vagamente cristianizado? Ocorrem-me três possibilidades. - Pode sempre tentar passar ao lado. Afasta-se, deixa correr, adopta umas frases de conveniência incluindo um esporádico "graças a Deus"; assim como assim, vale mais cair em graça que ser engraçado. - Tambem poderá alinhar. Deixar-se envolver, ouvir, colaborar até, e por fim adaptar umas frases de conveniência para incluir um esporádico "graças a Deus";  assim como assim, vale mais cair em graça... - E tem sempre a alternativa definitiva: desistir. Possivelmente começa por contestar o escrito incontestável-porque-Deus-o-mandou-escrever-e-como-isso-está-escrito-logo-Deus-existe, assume que o criacionismo é treta, tenta explicar como a ciência evoluiu e os dinossaurios acabaram tão fósseis como o petróleo, afirma compreender a moral, a ética e religião, a sorte e a guerra, afunda-se nas provas e na argumentação dogmática, impenetrável, mirabolante ou simplesmente mágica sobre a idade da Terra, o raio do Sol ou a decadência do lítio, e acaba adaptando umas frases de conveniência para incluir um espasmódico "graças a Deus"; assim como assim, vale mais cair em graça que sair desgraçado.

No passado Dia Das Mentiras morreu o historiador Jacques Le Goff, que tão bem nos soube explicar como os nossos antepassados, apesar do conforto e da certeza dos dogmas que tudo explicam, não se sentiam confortáveis num sistema binário de céu e inferno. A vida é bem mais complexa e diversa, intuiram entre duas espadeiradas nos infiéis e um ocasional esfogareirar de bruxedos; entretanto, criaram novos dogmas de esperança, juntamente com o desenvolvimento do comércio e a complexificação das relações sociais, numa Idade Média cujas trevas Le Goff ajudou a dissipar. Recordo que quando era pequenino, na catequese e na minha santa inocência, nunca fui lá muito bem com a história do purgatório (tal como nunca digeri a santíssima trindade, não tanto pela trindade, mais pela santíssima, mas isso é para outra história.) Afinal, tantas foram as coisas que se passaram na Europa por volta dos séculos XII e XIII, como essa instituição em epígrafe, sancionada pelo primeiro papa eleito por cardeais fechados à chave e há três dias a pão e água.

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