As regras da sã convivência com
gentes e costumes diversos, revestem-se de tonalidades inesperadas. Assim, como é que
um aprendiz de iconoclasta rendido à diversidade, obviamente sem pretensões de militância, vai lidar com a
imersão permanente em manifestações do pensamento mágico vagamente
cristianizado? Ocorrem-me três possibilidades. - Pode sempre tentar passar ao lado.
Afasta-se, deixa correr, adopta umas frases de conveniência incluindo um
esporádico "graças a Deus"; assim como assim, vale mais cair em graça
que ser engraçado. - Tambem poderá alinhar. Deixar-se
envolver, ouvir, colaborar até, e por fim adaptar umas frases de conveniência
para incluir um esporádico "graças a Deus"; assim como assim, vale mais cair em graça... - E tem sempre a alternativa
definitiva: desistir. Possivelmente começa por contestar o escrito
incontestável-porque-Deus-o-mandou-escrever-e-como-isso-está-escrito-logo-Deus-existe, assume que o criacionismo é treta, tenta explicar como a ciência evoluiu
e os dinossaurios acabaram tão fósseis como o petróleo, afirma compreender a moral,
a ética e religião, a sorte e a guerra, afunda-se nas provas e na argumentação
dogmática, impenetrável, mirabolante ou simplesmente mágica sobre a idade da
Terra, o raio do Sol ou a decadência do lítio, e acaba adaptando umas frases de
conveniência para incluir um espasmódico "graças a Deus"; assim como
assim, vale mais cair em graça que sair desgraçado.
No passado Dia Das Mentiras morreu o historiador Jacques Le Goff, que tão bem nos soube explicar como os nossos
antepassados, apesar do conforto e da certeza dos dogmas que tudo explicam, não se sentiam confortáveis num
sistema binário de céu e inferno. A vida é bem mais complexa e diversa,
intuiram entre duas espadeiradas nos infiéis e um ocasional esfogareirar de bruxedos; entretanto, criaram novos dogmas de
esperança, juntamente com o desenvolvimento do comércio e a complexificação das relações sociais, numa Idade Média cujas trevas Le Goff ajudou a dissipar. Recordo que
quando era pequenino, na catequese e na minha santa inocência, nunca fui lá muito bem com a história do
purgatório (tal como nunca digeri a santíssima trindade, não tanto pela
trindade, mais pela santíssima, mas isso é para outra história.) Afinal, tantas foram as
coisas que se passaram na Europa por volta dos séculos XII e XIII, como essa instituição em epígrafe, sancionada pelo primeiro papa eleito por cardeais fechados à chave e há três dias a pão e água.
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