Há uma certa clareza matinal no pensamento, ainda no lusco-fusco do dia que volta. Depois da casa dos sonhos arrumada e daquele meio sonhar acordado na alvorada da vigília, há um nadinha de um momento em que parece que o cérebro está livre e desocupado; talvez durante as deambulações rotineiras da manhã, aparece um espacinho disponível para a entrada de ideias novas, frescas, resplandecentes, a estrear, sem a mácula ou o peso dos dias anteriores. Pelo menos aparentemente, é quanto basta para o pensamento fluir límpido, um pouco antes de recomeçarmos inocentemente a organizá-lo para a diária labuta pela sobrevivência ou aparência de vida.
Construímos o nosso viver em
sociedade assim, em diálogo constante com o desconhecido, com a incerteza, com
o medo, considerando o que aprendemos, reformulando e adaptando constantemente a
acção. Daquilo que vamos construindo, das imagens que apreendemos, estruturamos
os actos seguintes, construímos um sistema de valores e aí somos capazes de contribuir com algo do que aprendemos,
transmitir a outros, influenciar então quem nos rodeia. É bem conhecida e
estudada a nossa extraordinária a aptidão como espécie para a socialização como
vantagem competitiva, para melhorar as condições de sobrevivência em conjunto
com outros da mesma espécie, quando não de outras espécies. Essa aptidão somada à necessidade de dominar o meio e organizar a realidade, faz-nos aquilo que somos, leva-nos desenvolver o gesto e elaborar a fala e a escrita, a estruturar o pensamento e criar
regras para distinguir o bonito do feio, o bom do mau, o justo e o injusto, e
mais a igreja universal onde o milagre é natural (sobre religião, lá iremos
noutra altura), adestrar a mão, desenvolver a tecnologia.
Ah, pois, e como muito bem explicou Charles
Darwin na "Origem das Espécies", há também umas interacções mais para
pensar, coisas da vida, relacionadas com a nossa evolução no planeta. Afinal, é
natural que uma espécie se reproduza em excesso ao conseguir adaptar-se maravilhosamente e consumir todos os recursos disponíveis e, sendo capaz, como a nossa
de controlar os inimigos naturais, de tão bem sucedida que é acaba criando um
desequilíbrio ecológico tal que tende a extinguir-se. Entre outras coisas
ocorre-nos que a sustentabilidade da modernidade e do sistema de valores de uns,
se faz inexoravelmente à custa da sobre-exploração dos recursos de todos.
Não
há bem nem mal que sobreviva assim, haverá falta de filósofos ou excesso de
economistas, ou parafraseando Umberto Eco, o homem inteligente pode cometer
actos estúpidos, mas o estúpido persiste, continuadamente pratica actos
estúpidos, define-se como tal porque até a si próprio se prejudica.
Claro que nenhum destes
pensamentos poderia ocorrer sem a paz, sem o sono reparador, sem a tranquilidade
dos campos do antigamente, do tempo em que os animais falavam; sossego que,
deveras, não existe na cidade de hoje. Pelo menos um trio de geradores das
casas adjacentes teve anteontem uma noite de funcionamento contínuo; devia ter
fechado melhor a janela, talvez, mas não sei se adiantaria grande coisa. Isto
não é o campo ou a província, é o Morro Bento, a Maianga ou a Vila Alice (quem
era o Rocha Pinto?) tanto faz. Vale para dormir, uma fantástica
capacidade de adaptação que o nosso cerebrozinho tem: lá desliga o ouvido do
som repetido e já identificado, relega o coro dos tuc-tuc-tuc monótonos e mal
abafados para um fundo inconsciente. Agora o raio do coro dos canídeos
de ontem no quintal de trás, assíncrono, esganiçado, por vezes uivante e de
período imprevisível… Só dá para dormir pouco e mal, acorda-se às 2, às 3, às 4,
desiste-se às 5, café é que nos salva. Esta é também uma boa razão para ter
gatos em casa e um bom diálogo com os vizinhos. Não há filosofia que aguente
noites mal dormidas.
Sem comentários:
Enviar um comentário