quinta-feira, 1 de março de 2012

O Gerador e o Cão


Há uma certa clareza matinal no pensamento, ainda no lusco-fusco do dia que volta. Depois da casa dos sonhos arrumada e daquele meio sonhar acordado na alvorada da vigília, há um nadinha de um momento em que parece que o cérebro está livre e desocupado; talvez durante as deambulações rotineiras da manhã, aparece um espacinho disponível para a entrada de ideias novas, frescas, resplandecentes, a estrear, sem a mácula ou o peso dos dias anteriores. Pelo menos aparentemente, é quanto basta para o pensamento fluir límpido, um pouco antes de recomeçarmos inocentemente a organizá-lo para a diária labuta pela sobrevivência ou aparência de vida.
 Encontra-se nesse momento disponibilidade para reflectir na essência das coisas, no sistema que nos sustenta as decisões de todos os momentos. E que serão todas únicas e determinantes, embora isso possa escapar à percepção consciente: nunca chegaremos a saber o que aconteceria se fossemos por ali em vez de por aqui, o que aconteceria se fizéssemos algo por esta ordem ou por outra, ou isto em vez daquilo.


Construímos o nosso viver em sociedade assim, em diálogo constante com o desconhecido, com a incerteza, com o medo, considerando o que aprendemos, reformulando e adaptando constantemente a acção. Daquilo que vamos construindo, das imagens que apreendemos, estruturamos os actos seguintes, construímos um sistema de valores e aí somos capazes de contribuir com algo do que aprendemos, transmitir a outros, influenciar então quem nos rodeia. É bem conhecida e estudada a nossa extraordinária a aptidão como espécie para a socialização como vantagem competitiva, para melhorar as condições de sobrevivência em conjunto com outros da mesma espécie, quando não de outras espécies. Essa aptidão somada à necessidade de dominar o meio e organizar a realidade, faz-nos aquilo que somos, leva-nos desenvolver o gesto e elaborar a fala e a escrita, a estruturar o pensamento e criar regras para distinguir o bonito do feio, o bom do mau, o justo e o injusto, e mais a igreja universal onde o milagre é natural (sobre religião, lá iremos noutra altura), adestrar a mão, desenvolver a tecnologia.
Ah, pois, e como muito bem explicou Charles Darwin na "Origem das Espécies", há também umas interacções mais para pensar, coisas da vida, relacionadas com a nossa evolução no planeta. Afinal, é natural que uma espécie se reproduza em excesso ao conseguir adaptar-se maravilhosamente e consumir  todos os recursos disponíveis e, sendo capaz, como a nossa de controlar os inimigos naturais, de tão bem sucedida que é acaba criando um desequilíbrio ecológico tal que tende a extinguir-se. Entre outras coisas ocorre-nos que a sustentabilidade da modernidade e do sistema de valores de uns, se faz inexoravelmente à custa da sobre-exploração dos recursos de todos. 
Não há bem nem mal que sobreviva assim, haverá falta de filósofos ou excesso de economistas, ou parafraseando Umberto Eco, o homem inteligente pode cometer actos estúpidos, mas o estúpido persiste, continuadamente pratica actos estúpidos, define-se como tal porque até a si próprio se prejudica.

Claro que nenhum destes pensamentos poderia ocorrer sem a paz, sem o sono reparador, sem a tranquilidade dos campos do antigamente, do tempo em que os animais falavam; sossego que, deveras, não existe na cidade de hoje. Pelo menos um trio de geradores das casas adjacentes teve anteontem uma noite de funcionamento contínuo; devia ter fechado melhor a janela, talvez, mas não sei se adiantaria grande coisa. Isto não é o campo ou a província, é o Morro Bento, a Maianga ou a Vila Alice (quem era o Rocha Pinto?) tanto faz. Vale para dormir, uma fantástica capacidade de adaptação que o nosso cerebrozinho tem: lá desliga o ouvido do som repetido e já identificado, relega o coro dos tuc-tuc-tuc monótonos e mal abafados para um fundo inconsciente. Agora o raio do coro dos canídeos de ontem no quintal de trás, assíncrono, esganiçado, por vezes uivante e de período imprevisível… Só dá para dormir pouco e mal, acorda-se às 2, às 3, às 4, desiste-se às 5, café é que nos salva. Esta é também uma boa razão para ter gatos em casa e um bom diálogo com os vizinhos. Não há filosofia que aguente noites mal dormidas.

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