sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A Peça

A recolha do lixo por estes lados é criativa. Pouco frequente, irregular, mas criativa. O operador da escavadora é um artista. Os operadores, com os coletes reflectores verdes e laranja, galochas, boné e máscara “hospitalar”, são esteticamente umas figuras incríveis, a executar um estranho bailado de coreografia duvidosa.
O cheiro... Bom, o cheiro do lixo é igualmente mau em qualquer parte do mundo. O facto de pararem o trânsito para recolher o lixo (onde o recolhem) a qualquer hora e por tempo indeterminado, é, no mínimo, castiço, e cá como lá, é inerente à função. A cena é a seguinte:





A Merda

Peça muda com prólogo, três actos e sem epílogo à vista

Cenário :

Uma estrada qualquer, alcatroada, com bermas largas de terra vermelha, num local indeterminado; poucas árvores, algumas casas dispersas de ambos os lados da estrada; muita luz, é pleno dia, sol suportável (deve ser ao final da manhã).
Muito trânsito, engarrafado, uma fila compacta em cada sentido da estrada, carros, carrinhas, motociclos, camiões, carrinhos de mão, etc. Na estrada, junto à berma estão dois contentores metálicos de 700 ou 800 litros a transbordar de lixo;  na berma larga está também um monte de lixo atrás e à volta dos contentores.

Personagens:
- Todos vestem colete reflector verde fosforescente, luvas de trabalho e máscara hospitalar barata.
Operador de solo (2 actores)
Controlador (igual aos Operadores, mas gesticula mais)
Operador de escavadora 1 (malabarista)
Operador de escavadora 2
Motorista do camião (figurante)

Prólogo

Do fundo da cena, em marcha lenta, vem a brigada da pré-recolha, chamemos-lhe assim, composta de duas escavadoras (amarelas), dois operadores de solo e o controlador. Logo a seguir um camião de fabrico chinês, grande, medonho, cinzento. Mais atrás, a fila de trânsito. 
A escavadora de trás para a dez metros dos contentores e, claro para o trânsito que vem atrás dela.
O controlador avança para a boca da cena e manda parar o trânsito em sentido contrário; assim garante espaço para a segunda escavadora se movimentar em frente aos contentores.

Primeiro acto – viração

A brigada de solo coloca os contentores “a jeito”, uns metros afastados um do outro e um pouco mais para dentro da estrada. O controlador acena para avançar a escavadora da frente.
A escavadora da frente atravessa-se, perpendicular à estrada, e agora o trânsito fica mesmo parado nos dois sentidos; antes, alguns atrevidos ou apressados ainda serpenteiam pelo meio das escavadoras e passam.
O malabarista sobe a pá da escavadora um metro e empurra os contentores um por um, entornando-os para a berma.
Os espectadores fecham as janelas das viaturas, os motociclistas debandam rapidamente.

Segundo acto – baile mandado

O malabarista coloca a pá da escavadora por debaixo das rodas do primeiro contentor e abana-o; todos assistem a uma distância segura.
- Sacode a pá da escavadora, cai algum lixo;
- sacode mais, o contentor entorna mais lixo para a berma;
- o malabarista então engata a pá nas rodas do contentor e levanta-o, de boca para baixo. Com movimentos espasmódicos da pá mecânica vertical, sacode o contentor exaustivamente.
- agora, manobra para trás enquanto ergue  o contentor ao limite dos hidráulicos, roda para trás e para a esquerda e sacode da pá mecânica o caixote do lixo que cai com estrondo e uma pequena nuvem de pó lixo e moscas no meio da estrada.

A um gesto do Controlador, a brigada de solo precipita-se para o contentor amolgado e disfuncional, endireita-o sobre as três rodas restantes e retorcidas, arrasta-o aos solavancos para a berma.

O Controlador acena para o malabarista repetir a dança habilmente com o outro contentor.

Terceiro acto – a carga:

A brigada de solo afasta-se, as duas escavadoras colaboram agora para criar um monte único de lixo trabalhando perpendicularmente, uma ao longo da berma, a outra a partir da estrada.

Um malabarista empurra o lixo, o outro malabarista amontoa;
Repetir a cena duas ou três vezes até ficar um único monte de lixo e terra na berma, onde antes estavam os contentores.

O controlador acena para mandar avançar o camião, as escavadoras colaboram novamente.
- Uma carrega o camião,  a outra amonto a lixo;
- Repetir a cena 2 ou 3 vezes até acabar o monte.

Muito naturalmente, vários espectadores vão passando com os carros sempre que as escavadoras deixam um bocadinho de caminho livre... É gente com pouca paciência para engarrafamentos.

Sem Epílogo À Vista:

O controlador avança à frente dos operadores de solo. As escavadoras seguem-nos, o camião atrás. Dirigem-se para o próximo contentor, um quilómetro mais à frente.
O controlador e os operadores de solo apanham boleia nas máquinas e no camião em marcha lenta.

Os espectadores forçados nas suas viaturas trancadas no engarrafamento engalfinham-se a tentar ultrapassá-los perante a fila compacta do trânsito em sentido contrário, que começa a desvanecer-se perante o caminho livre. Aparecem figurantes de todos os lados da estrada, jovens de uma escola próxima saem das aulas e aguardam transporte na berma, em frente aos contentores do lixo.
De uma casa sai uma mulher que despeja um balde de resíduos num dos contentores recentemente esvazido; a vida retoma o seu curso no ciclo das pequenas coisas do dia-a-dia que se repete, um dia destes haverá mais.

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